1. Não é verdade que o lugar mais desarrumado duma casa de família seja o quarto das crianças. Pior que ele – mais atulhada e sinuosa, certamente – será uma outra divisão de cada casa: a cabeça dos pais. A cabeça dos pais, ora parece um quarto de brinquedos, no sótão – onde eles se fecham, sozinhos, cochichando com os seus arrepios ou brincando com os seus botões – ora lembra uma garagem, empanturrada de caixotes poeirentos, onde o indispensável se confunde, muitas vezes, com o substituível. A diferença entre o quarto das crianças e a cabeça dos pais é que, enquanto elas têm quem as incomode e repreenda, a muitos pais parece que lhes falta um “anjo da guarda” que ponha ordem em todo o corrupio de coisas fora do lugar. E, talvez por causa disso, enquanto as crianças espalham, descontraídas, os brinquedos pela casa, muitos pais, passando de si próprios uma ideia muito arrumadinha, acumulam, vezes de mais, “macaquinhos no sótão”. O jeito que dá, portanto, um anjo da guarda!
Seja como for, não gosto da forma como os pais puxam para outras entidades a prova de vida do seu amor. É assim com o Pai Natal, por exemplo, quando se trata de alguém fazer de “abono de família”, ou com “o homem do saco”, quando se delega numa troika qualquer o mais odioso de todos os “tem que ser!”. Que sentido tem falarem dum anjo da guarda para dizerem às crianças: “Onde quer que tu vás, eu estou contigo”? E porque é que não são claros e confidenciam: “Estou um bocadinho na luz dos teus olhos e no trepidar do teu coração (mesmo quando ele se engasga e te atrapalha). E na forma, cheia de engenho, como caças duendes ou embirras com a tua professora. E, claro, no modo como procuras mistérios ou não gostas da matemática quando a avó Alice ta tenta ensinar. E estou nas tuas lamúrias. Como nas tuas manhas e, até, nas nossas manias. E, já agora, na forma como me dizes que me amas mesmo que te fiques, unicamente, por outro: ‘não gosto de ti!’. Onde quer que tu vás, eu estou contigo; mas não sou tu.” (A fórmula seria, suponho eu, mais essa.) De qualquer modo, um anjo da guarda permite que Deus não esteja em todo o lado, ao mesmo tempo. E como essa delegação de funções admite, inclusive, que as crianças tenham a quem apresentar cadernos reivindicativos, com um twist à italiana, tudo fica muito mais animado para elas porque Deus não poderia amuar, nem ficar vermelhusco, quando ralha, nem podia dizer: “Se não gostas de mim, procura outra mãe” (porque isso talvez não fosse tolerado pelo contrato de trabalho que Ele mantém com a Humanidade).
Mas se não gosto da forma como delegam nos anjos da guarda o carinho com que olham pelos filhos, não gosto, também, por outro lado, do modo como os pais consideram como “macaquinhos no sótão” todas as suas mais silenciosas inquietações. Ora, se falta aos pais quem faça de anjo da guarda eles que protestem. E que exijam, a quem olhe por eles, que “faça pela vida”. E que deixem de supor que os avós das crianças, “porque já têm alguma idade”, não devam ser incomodados com pedidos de mimo. Por acaso, anjo que é anjo envelhece? E, depois, quando os filhos põem aberturas fáceis no coração dos pais, falando por eles, os milagres não existem? Porventura alguma vez é tarde para se reclamar colo a quem sentimos que o tem para nós? Os “macaquinhos no sótão” são, portanto, uma entidade mítica com que muitos pais se desculpam para dizerem, quando ficam a matutar nos seus ressentimentos, que se desamparam a culpa não será deles. É dos macaquinhos... José Mário Branco, de forma esclarecida e arrebatadora, talvez fale desse formigueiro no coração dum jeito mais bonito. Assim: “A contas com o bem que tu me fazes, a contas com o mal por que passei, com tantas guerras que travei, já não sei... fazer as pazes.”
2. Os pais com “macaquinhos no sótão” são, muitas vezes, quase mágicos, quando dão colo, mas um bocadinho enfadonhos, como pessoas amáveis. Porque são mimalhas. Não exigem mimo – por medo de, sempre que o reclamam, não o terem – mas amuam, de desamparo, quando ninguém adivinha o seu desejo e não o satisfaz. Fazem de duendes ou de gnomos, porque se imaginam mais minúsculos do que são. E fazem de “formiguinhas da família”, talvez porque não imaginem outra forma de serem amados que não seja prestando, duma maneira generosa e incansável, bons serviços. Mas estragam-se quando aceitam, como quem encolhe os ombros, muitas coisas que os magoam devagarinho, a que chamam... “macaquinhos no sótão”. Eles sabem que perdoar é recordarmos as coisas sem que elas nos magoem. Mas, mesmo assim, moem a dor mas não a falam (e, desse modo, ela não passa). E são tantos os pequenos episódios de falta de mimo que os atormentam (e que não esquecem), que os seus gestos parecem ser sempre medrosos e assustados. Não reivindicam, de forma clara, nem abraços nem atenções e, quando damos por eles, lamuriam-se, mas não são arrebatados, engenhosos ou, simplesmente, vivos, quando nos dizem: “gosto de ti!”. E, mesmo que haja quem os queira amar, nunca parecem estar todos num mesmo lugar: retiram-se, e agem como se, de entre todas as pessoas, escolhessem, teimosamente... os macaquinhos. Na verdade, não são mimados: são mimalhas. Ou, se preferirem, são uma espécie de anjo da guarda em part time. E isso é mau!
Já os pais que fazem de anjos da guarda a tempo inteiro arrumam o quarto das crianças enquanto resmungam contra a sua falta de autonomia. E descascam-lhes as laranjas, mesmo quando indagam acerca das “boas mãos” que parecem não lhes faltar. E vão buscá-las à escola e interrompem o caminho de volta para casa só para darem um passeio ou para as verem lanchar leite com chocolate (ou com qualquer outra coisa quase tão doce como o seu amor). E contam-lhes histórias, a sério ou só pelo gosto de as inventar. E esparramam-se na cama, bem junto a elas, e tagarelam, enquanto aconchegam os lençóis. E pespegam-lhes beijos, dos grandes, bem demorados, na cabeça, antes de apagarem a luz e de dizerem “boa noite”. E, em vez do escuro, deixam, atrás de si, um rasto de estrelas, borboleteando, pelo quarto.
3. As crianças ou são mimadas ou são mimalhas. Não sendo uma coisa nem outra, são caprichosas e mal-educadas. As crianças mimalhas ficam presas nos desamparos dos próprios pais. Lamuriam-se e rezingam, que são um apelo de mimo e um “chega-te para lá”, ao mesmo tempo. É claro que elas estão sempre a tempo de se tornarem mimadas; assim os pais deixem os “macaquinhos no sótão” e se transformem em anjos da guarda, enquanto podem.
As crianças caprichosas e mal-educadas, tornam-se, elas próprias, os “macaquinhos no sótão” dos seus pais. De certo modo, “voam” mais depressa que os anjos da guarda... E, suponho eu, percebe-se porquê: talvez elas sintam, como mais ninguém, que terão pais que nunca virão a ser anjos da guarda e, sendo assim, enquanto os atormentam e agitam, iludem, de forma mais ou menos vertiginosa, esse vazio.
Já as crianças mimadas só se tornam assim porque têm quem faça, a toda a hora, de anjo da guarda só para si. E é por serem, saudavelmente, mal habituadas desse jeito que, pela vida fora, ao lutarem por quem as ame, não admitem ser ignoradas ou desconsideradas, nem magoadas com gestos desatentos. E tão depressa fazem uma birra como, a seguir, a esquecem e abraçam, de carinho, com força. E, em vez de amuarem, esganiçam-se, de fúria, antes de rirem, sem cortinas, por quase nada que pareça superlativo para os sisudos.
Benditas sejam as crianças mimadas! Aliás, não sei quem pôs a circular que ser-se mimado seria um obstáculo para se crescer. Mas, fosse quem fosse, estava enganado. Compreendo que as crianças mimadas, de tão habituadas estarem a quem as adivinhe, às vezes, pareçam molengonas. E, seja em relação aos sonhos ou às suas metas, fiquem, mimentas, à espera de quem se antecipe e fale por elas e, se for possível, dê um... empurrãozinho a tudo o que desejam. Seja como for, o mimo torna-as mais simples e mais bonitas. E, por mais que não pareça, são elas quem põe o mundo aos pinotes e o vira do avesso.
Em resumo: quanto mais mimo mais anjos da guarda e quanto melhores anjos da guarda menos “macaquinhos no sótão”. Isto é, se não fossem os macaquinhos trazerem, mais do que deviam, interferências ao mimo que nos falta, e o mundo das pessoas que nos amam seria um “exército” de anjos da guarda mais ou menos sem fim.
Escrito por Eduardo Sá, psicólogo